Escrito pelo Quiropraxista Iury Rocha
Corria o ano de 1994. Entre um atendimento e outro na clínica estudantil do Palmer College of Chiropractic, o doutor Garry Krakos, DC procurava conciliar sua dupla função de Diretor de Serviços ao Estudantes e de Diretor do Escritório Internacional. E naquela época, recebeu um convite para integrar uma força-tarefa multidisciplináriapara fazer atendimento humanitário no Haiti.
Ele e um estudante que integrou a comitiva voltaram energizados e entusiasmados. Uma sementinha havia sido plantada ali. E foi justamente esta energia e entusiasmo que fez este embrião crescer e se tornar em 1996 o projeto internacional humanitário mais ambicioso da 1ª universidade de Quiropraxia do mundo: o Palmer College ofChiropractic's Clinic Abroad Program (CAP).
Funcionava da seguinte forma: estudantes residentes, professores e Quiropraxistas já formados integravam uma missão e viajavam para países carentes de atendimento. As viagens eram eletivas. Ia quem quisesse, quem se qualificasse e quem se sentisse compelido a conhecer um pouquinho mais do mundo.
Ao chegarem nesses países, passavam de 6 a 8 dias ajustando num ambiente clínico, constantemente desafiados com casos que não são tipicamente vistos em países tidos como desenvolvidos. Havia em média 7 alunos para cada professor. Isto permite melhor supervisão. “Os grupos aprendem a trabalhar em equipe para ter sucesso”, observou na época o Dr. Krakos. “A experiência rejuvenesce o corpo docente. Coloca-os em contato com a Quiropraxia do ponto de vista humanitário.”
Tipicamente um estudante teria a oportunidade de ajustar mais de 100 pacientes neste período. E por precisarem realizar um determinado número de ajustamentos para que pudessem se formar (como em qualquer universidade do mundo), era uma situação em que todos saíam ganhando. "CAP proporciona aos estudantes (8º-10º trimestres) uma intensa experiência prática numa terra estrangeira, e uma exposição (sem igual) a outras culturas e (tratamentos)."
Um parêntese: o 8º ao 10º trimestre representam o último ano de estudo no Palmer College — e é justamente neste período do currículo que começa o estágio clínico.
Lori Curry-Whitcomb, RN, MS, então coordenadora do Clinic Abroad Program, relatou que, até 2014, mais de 7.700 estudantes e 1.130 docentes e Quiropraxistas fizeram parte do programa e viajaram para "ajudar pessoas que vivem em áreas com atendimento precário (...). 9 a 12 viagens são coordenadas a cada ano (nos meses de fevereiro, junho e outubro) e variam em extensão de 10 a 20 dias. Países como Brasil, Marrocos, Índia, Vietnã, Bequia e outras ilhas caribenhas (...)".
Mas as missões não se limitaram somente a esses países, não. O programa cresceu em sofisticação e organização. Com a recomendação do Conselho de Educação em Quiropraxia, o CAP ampliou sua atuação em outras nações, como México, Madagascar, República Dominicana, Haiti, Ilhas Fiji, Honduras, Bolívia, Hungria, Nepal, China e Síria — além de, curiosamente, uma reserva indígena nos Estados Unidos. Guy Riekeman, DC, então Presidente do Palmer College of Chiropractic disse na época que "uma expressão da responsabilidade do 'The Fountainhead' da profissão é levar Quiropraxia ao mundo".
Mas não era simplesmente chegar lá e atender. "Nós sempre indicamos pacientes ao Quiropraxista mais próximo," relatou o dr. Krakos, "mas nosso objetivo é regressar a cada local pelo menos 2 vezes por ano para fornecer cuidados de acompanhamento e avaliação de resultados até que possamos estabelecer instalações permanentes."
Tinha que também haver planejamento e permissões. "Trabalhamos com associações de Quiropraxia reconhecidas em cada país e coordenamos com os contatos locais para obter a aprovação governamental do Ministério da Saúde ou de outro órgão governamental apropriado”, explicou o Dr. Krakos. “Este é um requisito para todos os locais. (...) Trazemos as nossas próprias mesas e gerimos nós próprios a clínica, e podemos instalá-la numa variedade de ambientes, desde hospitais a centros comunitários e escolas. Geralmente, um local de clínica é configurado para uma estadia inteira. Isso permite que os pacientes tenham a oportunidade de retornar para receber atendimento e serem tratados pelo mesmo profissional. Nosso objetivo é desenvolver instalações permanentes e funcionais em cada país”, informou.
Todo este esforço trouxe alguns frutos inesperados. Houve nativos desses países que, inspirados pelo CAP, começaram a estudar Quiropraxia — como o caso de uma jovem fijiana que foi estudar no Palmer. E alguns dos próprios alunos que participaram do programa gostaram tanto que regressaram aos países que visitaram e começaram a clinicar neles.
O doutor Ken Brian, DC foi um destes alunos que, curiosamente, depois de formado participou do programa também como Quiropraxista. Gostou tanto do Brasil que abriu uma clínica em Cuiabá-MT e está aqui até hoje.
Além de planejamento e permissões, tinha que haver também preparação. Muita preparação. Que começava meses antes do 1º avião decolar. "Nossa orientação antes da partida começa com meses de antecedência e inclui reuniões semanais sobre segurança, história, governo, política, religião e idioma do país, bem como as condições de saúde que os estudantes provavelmente encontrarão", ressaltou Lori Curry. São aulas e mais aulas de sessões educacionais que incluem programas de orientação cultural. "A gente coordena toda a papelada para passaportes, visas e seguro-viagem", completou.
Além de tudo isso (e das obrigações acadêmicas), os alunos ainda encontravam tempo para realizar eventos de arrecadação de fundos (levantando uma média de 30 mil dólares por ano!) para fazer doações a orfanatos, escolas e instituições do tipo — e assim possibilitar compra de material didático, merenda escolar, roupas e brinquedos. Numa dessas viagens, com parte do dinheiro arrecadado, chegaram até a comprar bolas infláveis em forma de globo terrestre para dar às crianças e ensinar um pouco de geografia.
Aqui no Brasil, geralmente o Clinic Abroad costumava concentrar-se no Rio Grande do Sul, em Manaus, na área metropolitana de Salvador e na Chapada Diamantina. Cada região atendida contava com um Quiropraxista que atuava como coordenador local. Nosso Marcos Palmeira, DC cuidava da Grande Salvador. E o atual Diretor Regional da ABQ do Nordeste, Ian Rocha, DC, do interior da Bahia. "Eu participei como coordenador local do Palmer Clinic Abroad no brasil de 2003 a 2014. Fizemos 14 viagens — alguns anos foram duas viagens, no outono e primavera. (...) Em cada viagem vinham entre 15 a 35 estudantes e staff (e) eram atendidos (...) entre 1000 a 3000 pacientes (...) por 5 ou 6 dias em escolas, postos de saúde, hospitais, ginásio de esportes... etc.. (...) Atendemos nas cidades baianas de Seabra, Iraquara, Palmeiras, Andaraí, Mucugê e no Vale do Capão — todas na região da Chapada Diamantina. Também em Feira de Santana e no seu distrito São José das Itapororocas, e no litoral do sul da Bahia, em Barra Grande e Ilhéus. (...)," relembra.
Em Ilhéus-BA, o evento não ocorreu com muita frequência. Mas houve um ressurgimento por conta, em parte, do entusiasmo e carinho que um hoje já falecido dentista americano tinha pelas Terras da Gabriela.
O doutor Alan Hathaway foi, no período em que viveu, um profissional realizado. Atendeu por décadas numa tradicional e concorrida clínica na cidade natal da Quiropraxia: Davenport, com 100.000 habitantes. localizada no estado de Iowa, em pleno meio-oeste americano. Nosso dentista era, acima de tudo, um cara que sabia viver. Navegava nos fins de semana pelo rio Mississippi num barquinho de dois andares. Tocava um jazz maneiro com um grupo de amigos. Participava ativa e intensamente da vida política da cidade. E possuía uma extensa coleção de carros antigos — chegando até a cruzou os Estados Unidos de ponta a ponta num calhambeque dos anos 30 na famosa Route 66. Sim, era um autêntico bon vivant.
Como se não bastasse todas estas atividades, Hathaway, desde meados da década de 80, ainda encontrava tempo para passar 3 semanas 2 vezes por ano fazendo atendimento gratuito nos dentes das crianças de Medina, uma empobrecida cidadezinha de 21.000 habitantes no sertão do norte de Minas Gerais.
A partir da década de 90, decidiu esticar sua viagem passando mais 3 ou 4 dias em Ilhéus, onde aproveitava para atender as crianças da Vila Nazaré, um bairro carente na periferia da cidade. Apaixonou-se perdidamente pela beleza e encantos da Princesinha do Sul.
Por isso, exerceu na época toda sua influência política para incluir Ilhéus no Programa Cidades-Irmãs de Davenport. Tratava-se de um intercâmbio comercial, educacional e cultural entre duas cidades com o intuito de facilitar negócios, turismo, e questões acadêmicas. Ilhéus, por possuir uma deslumbrante beleza natural, seria naturalmente beneficiada por esta troca de experiências.
O primeiro contato deu-se em 2002, ainda na gestão de Jabes Ribeiro. Ilhéus não era estranha ao Programa Cidades-Irmãs. Na década de 80, houve uma tentativa no primeiro mandato de Jabes de estabelecer relações com Hershey, uma cidade de 12.000 habitantes no estado da Pennsylvania. Conhecida como “o lugar mais doce do mundo” por ser a terra natal do chocolate Hershey, nada mais natural do que ser cidade-irmã de outra que era, na época, grande produtora de cacau. Mas, por algum motivo, este projeto não foi adiante.
O Programa Cidades-Irmãs sofreu um hiato durante as eleições de 2004, mas a gestão seguinte mostrou-se surpreendentemente interessada. A ponto de enviar o seu vice-prefeito para visitar Davenport. Desde então, o projeto avançou. Com o tempo, arrefeceu. Mas até nos dias de hoje, podemos ver resquícios desta parceria nos programas de intercâmbio entre a Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC) e a Saint Ambrose University — por sinal, bastante produtivo para ambas.
Foi justamente nesta época que o Clinic Abroad retornou a Ilhéus depois de alguns anos. O contato local era eu, obviamente. Fiz entrevistas no rádio, jornal e televisão. E esta era a minha chamada num artigo que publiquei n'O Diário de Ilhéus: "O Mutirão da Coluna é formado por residentes selecionados sob a supervisão de Quiropraxistasque fazem parte do corpo docente da Palmer College of Chiropractic. O evento acontecerá entre os dias 25 e 28 de outubro. Haverá faixas indicando os lugares. A intenção é atender gratuitamente cerca de 700 pessoas, tanto no centro da cidade, quanto nos bairros adjacentes. Pode significar o primeiro passo no tratamento de lombalgias, cervicalgias, cefaleias, hérnias de disco, e todo o tipo de afecção (neuromusculoesquelética) que envolva a coluna vertebral. Divulguem o acontecimento e espalhem a notícia. É para uma boa causa."
O evento foi perfeito para promover o Programa Cidades-Irmãs e estimular o intercâmbio cultural e econômico entre Davenport e Ilhéus.
Infelizmente, porém, ao longo dos anos, algumas das viagens tiveram percalços. Na de junho de 2008, o COFFITO acionou a Polícia Federal, que levou estudantes e Quiropraxistas para a delegacia, onde tiveram que prestar esclarecimentos. Foram eventualmente liberados. “A polícia afirma que agiu por causa de ligações persistentes naquele dia do presidente e do advogado da CREFITO-10”, informou a Dra. Juliana Piva, então presidente da ABQ. “A polícia chegou com repórteres da mídia organizados pelo COFFITO, e naquela noite houve notícias impressas e na Internet sobre a operação”.
Este incidente virou notícia internacional, que foi descrito numa das matérias publicadas no Dynamic Chiropractor como sendo "uma campanha cada vez mais agressiva da fisioterapia brasileira para que o governo federal declare a Quiropraxia uma sua exclusiva especialidade. 'É uma resposta aos recentes litígios contra líderes da fisioterapia promovidos por nós para proteger o status independente da Quiropraxia', disse o Dr. Ricardo Fujikawa, ex-presidente da ABQ e graduado do Palmer. 'A verdadeira batalha já começou.'" (E continua até hoje, né?)
Mais ou menos no mesmo período, a polícia local de Seabra-BA foi acionada (aparentemente por um fisioterapeuta) para fechar os atendimentos do Clinic Abroadnaquela localidade. Quando o dr. Ian Rocha resolveu pagar pra ver e avisar que só parariam de atender se fosse todo mundo preso, os policiais recuaram. A delegada da época reconheceu que estavam fora de jurisdição e interrompeu a ofensiva. Mas foi um susto e tanto.
Não se sabe se estes eventos tiveram alguma influência na extinção do CAP. Mas em 2016, o Palmer resolveu por fim ao programa. A explicação tida como oficial para esta decisão meio abrupta foi o surto do vírus Zika que assolava o Brasil e outros países da América do Sul e Caribe — o que não explica a interrupção do Clinic Abroad nos outros continentes nem a não-retomada do programa quando a situação eventualmente se normalizou (pelo menos até a pandemia de 2020).
Não faltaram especulações. Talvez alguns alunos, Quiropraxistas ou professores tenham adoecido ou se machucado durante as viagens. Talvez tenham acionado a universidade judicialmente. Talvez as companhias de seguro tenham vaticinado o programa como de alto risco, inviabilizando os custos — elas, que ditam as cartas por lá. Mas o ClinicAbroad parece ter sido definitivamente extinto.
Foi um final melancólico de uma iniciativa sensacional. No entanto, queira ou não, o objetivo do programa permaneceu constante enquanto durou. Dr. Krakos observou que o Programa foi "uma experiência humanitária com benefícios educacionais e pessoais incomparáveis para todos os envolvidos. Os alunos (adquiriram) habilidades clínicas e confiança, e, o mais importante, a percepção de que têm um dom a oferecer às pessoas. Isso os (tornou) melhores Quiropraxistas. Todos nós, sejam estudantes, professores, funcionários ou ex-alunos (iam) lá para doar, e o que ganhamos com isso (era) secundário".
Porque, primordial mesmo foi o alívio e bem-estar das centenas de milhares de pacientes beneficiados com o Clinic Abroad Program. Sim, uma perda irreparável.